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A Canção da Sobrevivência

Volume 1, Capítulo 2
Voltar para A Balada do Bardo Brutamontes
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Publicado em 10/05/2025
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O vento uivava através do vale, trazendo consigo o cheiro de pinho e terra molhada. Para Kim Dae-hwan, acostumado com a poluição sufocante de Seul, era um aroma quase dolorosamente puro. Mas a beleza daquele lugar não o acalmava. A incerteza, a desconfiança estampada nos rostos ao seu redor, era um peso muito maior do que qualquer saudade da sua antiga vida.

Ele estava no centro da vila, um aglomerado de cabanas de madeira toscas e tendas remendadas, protegidas por uma paliçada improvisada. As pessoas o encaravam como se ele fosse uma aberração, um monstro saído das lendas que contavam ao redor da fogueira. E, para ser honesto, ele não os culpava. Um homem corpulento, vestindo roupas esfarrapadas que claramente não eram daquele mundo, carregando um alaúde como se fosse um machado de guerra… era uma imagem, no mínimo, peculiar.

Diante dele, erguia-se Anya. A líder da vila, ele supôs. Uma mulher alta e musculosa, com o cabelo trançado em elaboradas redes que revelavam cicatrizes de batalhas passadas. Seus olhos, frios e penetrantes, eram como duas pedras de gelo. Ela não demonstrava nenhum traço de compaixão, apenas uma avaliação implacável. Dae-hwan sentia o peso daquele olhar, como se ela estivesse tentando ler sua alma, buscando qualquer sinal de traição ou malícia.

Os aldeões se mantinham a uma distância segura, sussurrando entre si. Os guardas, guerreiros magros, mas com o olhar endurecido pela experiência, apertavam as lanças, prontos para reagir a qualquer movimento brusco. A atmosfera era densa, carregada de tensão.

"Quem é você?" A voz de Anya era grave e autoritária, ecoando no silêncio da vila. "E por que apareceu aqui?"

Dae-hwan engoliu em seco. Como explicar que ele era um ex-lutador de Seul, transportado para aquele mundo por um capricho do destino? Como explicar que ele era, tecnicamente, um bardo, mesmo que sua única habilidade musical fosse desafinar o hino nacional coreano durante o karaokê?

"Eu… eu sou Kim Dae-hwan," ele disse, a voz hesitante. "Eu… não sei como cheguei aqui. Apenas… acordei aqui."

Anya ergueu uma sobrancelha, um sinal claro de incredulidade. "Acordou aqui? Sem memória de como chegou a nossa vila? Acha que somos tolos?"

Dae-hwan suspirou. Ele sabia que seria difícil. "Eu sei que parece estranho, mas é a verdade. Eu não tenho intenções ruins. Só quero entender o que está acontecendo."

Um dos guerreiros, um homem de rosto sardento e braços tatuados, deu um passo à frente. "Não confie nele, Anya. Ele pode ser um espião dos orcs. Eles estão sempre procurando maneiras de nos atacar."

A menção dos orcs fez um burburinho percorrer a multidão. O medo era palpável, quase tão denso quanto a desconfiança que eles sentiam por Dae-hwan.

"Silêncio, Borin," Anya ordenou, sem tirar os olhos de Dae-hwan. "Eu decidirei o que fazer com ele. Você diz que não tem intenções ruins, Kim Dae-hwan. Mas palavras são vazias. Preciso de provas."

Dae-hwan sabia que havia chegado a um ponto crucial. Ele precisava convencer aqueles aldeões de que não era uma ameaça. Precisava mostrar que podia ser útil. Mas como? Ele não tinha habilidades mágicas, não conhecia a cultura daquele mundo, e sua única arma era um alaúde que ele mal sabia tocar.

Seu olhar percorreu a vila, procurando por algo, qualquer coisa, que pudesse usar para provar seu valor. Foi então que ele viu. No centro da praça, perto do poço, havia uma pedra colossal, quase do tamanho de um carro. Era uma pedra irregular, com sulcos profundos e uma superfície desgastada pelo tempo. Ele se lembrou de ter visto os guerreiros da vila tentando levantá-la, sem sucesso.

"Eu posso ajudar," ele disse, a voz firme. "Eu posso provar minha força."

Anya olhou para a pedra, depois para Dae-hwan, com um misto de curiosidade e ceticismo. "Aquela pedra é usada para testar a força dos nossos guerreiros. Muitos tentaram movê-la, mas ninguém conseguiu. Você acha que pode fazer melhor?"

"Eu não sei," Dae-hwan respondeu, honesto. "Mas posso tentar."

Borin soltou uma gargalhada. "Você? Com esse… instrumento musical? Não me faça rir. Você não duraria um minuto em uma luta real."

Dae-hwan ignorou o insulto. Ele sabia que precisava escolher suas batalhas. E aquela era uma que ele não podia perder. "Eu não preciso lutar com você. Só preciso mostrar minha força."

Anya hesitou por um momento, avaliando a situação. "Muito bem. Você terá sua chance. Se conseguir demonstrar sua utilidade, talvez eu considere deixá-lo ficar. Mas se falhar… terá que partir. E se eu te vir de novo perto da nossa vila, não terei tanta paciência."

Dae-hwan assentiu. "Eu entendo."

Ele caminhou até a pedra, sentindo os olhares dos aldeões queimando em suas costas. Ignorou os murmúrios e os comentários sarcásticos. Concentrou-se em seu objetivo: provar que não era inútil. Provar que merecia uma segunda chance.

Ele parou diante da pedra, respirando fundo. A pedra era fria e áspera ao toque. Ele sentia o peso da história gravada em sua superfície, o esforço de todos aqueles que haviam tentado movê-la antes dele.

Dae-hwan apertou o alaúde contra o peito. Era uma arma estranha, ele admitia. Mas era a única coisa que ele tinha. E ele sabia, lá no fundo, que podia usá-la para algo mais do que tocar músicas desafinadas.

Ele fechou os olhos, buscando a calma que seu mestre, o Velho Monge Budista, sempre lhe ensinara. Lembrou-se dos anos de treinamento, da disciplina rigorosa, da busca pelo equilíbrio entre corpo, mente e espírito. Lembrou-se da força que havia perdido, mas que ainda residia em algum lugar dentro dele.

Quando abriu os olhos, sua expressão havia mudado. A hesitação e a incerteza haviam desaparecido, substituídas por uma determinação inabalável. Ele agarrou o alaúde com as duas mãos, erguendo-o acima da cabeça.

Os aldeões prenderam a respiração, esperando o que aconteceria. Borin sorriu, confiante de que o forasteiro faria papel de bobo.

Dae-hwan inspirou profundamente, reunindo toda a sua força. Sentiu os músculos de seus braços se contraírem, a energia fluindo através de seu corpo. E então, com um grito primal, ele abaixou o alaúde com toda a força, atingindo a pedra em cheio.

O som foi ensurdecedor. Um estrondo que ecoou pelo vale, fazendo os pássaros voarem em pânico. A terra tremeu sob seus pés. Por um momento, tudo ficou em silêncio. E então, um estalo alto, como um osso quebrando, cortou o ar.

Lentamente, a poeira começou a baixar. E o que os aldeões viram os deixou boquiabertos em choque.

A pedra, outrora um bloco sólido e imponente, estava rachada ao meio. Uma fenda profunda e irregular a dividia em duas partes, como se tivesse sido atingida por um raio.

O silêncio era absoluto, interrompido apenas pelo vento uivante. Ninguém conseguia acreditar no que havia acabado de testemunhar. Um homem, usando um instrumento musical, havia partido uma pedra colossal com um único golpe.

Borin foi o primeiro a se recuperar do choque. Seu sorriso desapareceu, substituído por uma expressão de perplexidade e medo. Ele olhou para Dae-hwan, como se o estivesse vendo pela primeira vez. Aquele não era apenas um forasteiro esquisito. Aquele era um homem perigoso.

Anya também estava surpresa, mas sua expressão era mais contida. Ela havia visto muitos guerreiros fortes em sua vida, mas nunca havia testemunhado algo como aquilo. A força bruta de Dae-hwan era inegável, mas havia algo mais ali, algo que ela não conseguia decifrar.

Ela se aproximou de Dae-hwan, seus olhos fixos nos dele. "Você é forte, eu admito. Mas força não é tudo. Precisamos de alguém em quem possamos confiar. Alguém que esteja disposto a lutar pela nossa vila."

"Eu estou," Dae-hwan respondeu, a voz firme. "Eu não tenho para onde ir. E eu não quero morrer como um ninguém de novo."

Anya suspirou. "Nossa vila está à beira da destruição. Os ataques dos orcs estão se tornando mais frequentes e mais violentos. Não posso me dar ao luxo de confiar em um estranho. Mas… posso te dar uma escolha."

Ela fez uma pausa, olhando nos olhos de Dae-hwan. "Você pode ficar e nos ajudar a defender a vila. Se provar seu valor em batalha, talvez eu possa te aceitar como um dos nossos. Ou pode partir agora e tentar sobreviver sozinho na terra selvagem. A escolha é sua."

Dae-hwan olhou para a pedra rachada, depois para os rostos apreensivos dos aldeões. Ele sabia que o caminho à frente seria difícil. A desconfiança, o medo, a guerra iminente… tudo conspirava contra ele.

Mas ele também sabia que não podia desistir. Ele havia recebido uma segunda chance, e não a desperdiçaria. Ele lutaria, não apenas pela sua sobrevivência, mas pela sobrevivência daquela vila, daquelas pessoas que o olhavam com tanta desconfiança.

Um sorriso lento se formou em seus lábios. Um sorriso que misturava determinação, desafio e uma pitada de loucura.

"Eu fico," ele disse, a voz ecoando com confiança. "Eu vou lutar com vocês."

Anya assentiu, um leve brilho de aprovação em seus olhos. "Muito bem. Mas não espere moleza. A guerra está chegando. E você terá que provar seu valor a cada passo do caminho."

Dae-hwan apertou o alaúde em suas mãos. Ele não sabia o que o futuro reservava. Mas ele estava pronto. Ele era Kim Dae-hwan, o Punho Relâmpago, o Bardo Brutamontes. E ele estava prestes a escrever sua própria balada, uma canção de sobrevivência, escrita com sangue, suor e o som estrondoso de um alaúde quebrando ossos.

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